O preconceito
Voce tem preconceitos?
Por Marco Aurélio Alves
Sua resposta ao ler a pergunta, certamente, foi negativa. E muito provavelmente você mentiu para sí mesmo ou enganou-se ou seguiu a onda atual que diz que você é uma pessoa descolada, politicamente correta, que não manifesta opinião para não ferir ninguém porque afinal é isso que está indicado nos populares livros de auto-ajuda. Além disso, você até tem um amigo gay, nem ri mais daquela gorda na academia, você até acha as negras são bonitas, por fim, você é tão boa gente que, até, cumprimenta o porteiro… Chega de hipocrisia, os preconceituosos mais perigosos são aqueles que estão enrustidos, no armário!
Os gays, com mais de 50 anos sentem o terrível mau cheiro do preconceito desde a infância: Nos anos 70, havia o medo de sair a rua, de passar por um grupo de pessoas ou entrar no bar ou no armazém porque ouviria gritos de “viado”, “bixa”… Era comum que, para provar sua masculinidade e superioridade os garotos na escola ou na rua dessem encontrões, safanões e até cuspissem na cara dos viadinhos porque isso suscitava muita aprovação dos colegas e até, de alguns professores. Muitos tinham medo de ir à Escola. Não havia a quem recorrer porque se chegasse em casa e contasse isso tudo, o problema seria ainda ampliado.
Depois vieram os anos 80 e começou a evolução mas ainda eram perceptíveis os comentários em voz baixa ou as risadinhas disfarçadas apontando um homossexual. A humilhação estava presente em muitos lugares, a começar pelo local de trabalho onde se acaso os chefes descobrissem a condição afetivo-sexual, colocavam a pessoa no olho da rua independente de sua capacidade ou competência. Postular um emprego em determinadas empresas, mais rudes ou pesadas, permitia que os proprietários dissessem que ali havia serviço para homem pois precisava utilizar a força física. Parece que só existiam algumas raras profissões onde era possível sobreviver sendo gay: cabelereiro, costureiro, artista. Em algumas profissões, a sociedade tolerava o comportamento diferente daquelas pessoas porque o talento se sobrepunha a qualquer outra condição.
Nos anos 90, voce ligava o televisor – e ainda hoje acontece – e o constrangimento era total porque, para a classe média, era muito divertido imitar a forma de falar, de caminhar, de agir dos gays e os comediantes faziam humor daquela condição. Afinal, quem se importa com a dor que sente quem sofre o preconceito¿ Parece que, para alguns, o humor era mais risível quando ridicularizava a condição humana. Ainda hoje tem muito engraçadinho que não perde a oportunidade de, no churrasco de empresa ou depois do jogo de futebol, contar uma piada da “bixinha”. Sim, imaginam que “bixinha” seja mais carinhoso e não ofende.
Mas agora tudo mudou porque existem as pessoas “politicamente corretas” e o mundo, definitivamente, é outro. É moda ter um amigo gay, falar nos namorados dos seus colegas, saber da vida dos profissionais gays – das mais diversas áreas – que lhes servem e muitos, apesar de dizerem o que pensam, podem frequentar a casa junto com a família. A mídia colocou o assunto na pauta ao que tudo indica, chegamos ao oásis. Infelizmente, isso não é verdade.
Tão doloroso e violento quanto os gritos de “veado” nos anos 70, é o preconceito velado, subliminar, enrustido. A maioria dos homens até aceitam os amiguinhos gays mas não se atrevem a ficar sozinhos com eles porque afinal ninguém sabe do que são capazes…dormir no mesmo quarto nem pensar, sair sozinhos pro bar pode gerar desconfianças então é melhor chamar uma amiga para acompanhar. Parece que a atividade sexual que os diferencia faz com que o sujeito, por ser gay, passe a vida pensando em sexo, querendo sexo, procurando sexo. Não é assim. Estas reações, aparentemente, inofensivas magoam, distanciam e até impedem amizades.
Algumas décadas atrás a esquerda afirmava que os conservadores eram os responsáveis pelo brutal sofrimento causado pelo preconceito. A esquerda era vítima de preconceito. Sem dúvida, havia que se acreditar que quando no poder, tudo seria muito diferente. Não mudou um milímetro o comportamento governamental nos últimos 50 anos. A AIDS nos anos 80, 90 e 2000 serviu para amplificar e em alguns casos justificar o medo que as pessoas sentem pelo diferente. Por mais que a ciência prove que HIV e gays são assuntos muito diferentes, muitos ainda temem e justificam seus preconceitos com base na epidemia.
Seria de se esperar que a relação com as diferenças fosse tão mais horizontal quando o indivíduo adquire maior informação, cultura e educação. Então inexiste preconceito nas Universidades? Alguém com Doutorado não agride a mulher? Os velhos, deficientes, faxineiros não sofrem preconceito no ambiente escolar? Infelizmente ainda não é assim. Muitos vivem num patamar de grande respeito mas a maioria ainda sente uma grande distância – alguns até raiva – entre a sua tribo e as demais.
A geração que nasceu com o século XXI escolheu a internet como refúgio porque ali podem criar personagens e manter-se protegidas da crueldade dos que ridicularizam as tatuagens, os cabelos, os skates, enfiam, sua forma de falar, de vestir, de agir, de pensar. O embate com o mundo externo se dará quando não mais for possível prover toda sua necessidade de carinho, de afeto, de atenção em frente a tela do computador. Estarão sozinhos ou acompanhados dos pais nesta aventura errante por um mundo que despreza o diferente?
Mas o pior, o mais assustador, o mais revoltante é quando pessoas que em seu cotidiano também são vítimas de preconceito – negros, índios, obesos, dependentes químicos, e outros tantos – alimentam essa forma de opressão. E nisso alguns gays também se incluem: por serem tão discriminados, necessitam exercer superioridade ofendendo, ridicularizando e desprezando outras tribos, vide o personagem central da atual novela das nove da Rede Globo. Que grande equivoco! É revoltante ver uma pessoa vulnerável ofendendo qualquer outra. O indesejado recrudescimento é inevitável para que algumas questões voltem ao eixo que permite a igualdade.
Livrar-se dos preconceitos deve ser uma busca e um exercício diário, uma conquista que vai muito além da cultura, da educação e das origens. Viver sem preconceitos é perceber, respeitar e gostar da pessoa na sua integralidade e individualidade independendo dela ser gorda ou alta ou fumante ou virgem ou cientista ou tomadora de cerveja ou índia ou rotariana ou filiada ao psol ou manca ou com barriga tanquinho ou interiorana ou rica ou analfabeta ou mestrada ou prostituta ou ex detenta ou bancária ou apenas uma pessoa, nada mais. Só assim, no futuro as próximas gerações se olharão com menos temor e serão bem mais felizes para viver o seu afeto.